16 janeiro, 2006

- Trivial -

Bárbara saiu com seu carro esporte – que tinha ganhado de aniversário – logo depois do almoço. Era sábado. Dia de passar a tarde inteira fazendo o que mais gostava: compras! Para ela não havia distração melhor. Ainda mais quando precisava se acalmar. Indispensável! Era mais saudável do que comer chocolate – que engordava –, ou encher a cara num bar qualquer – que dava olheiras –, ela dizia.
Patricinha que só ela, Bárbara provavelmente compraria mais algumas dezenas de pares de sapatos para sua coleção, entre outras coisas supérfluas que costumava adquirir também. Ao contrário da maioria das meninas da mesma estirpe, ela preferia fazer suas compras sozinha e não em bandos como a lei exigia. Só para mais tarde ter o bel prazer de mostrar à suas amigas – sempre sedentas pelos exclusivos e últimos lançamentos da caríssima marca ‘SUIS-FUTILE’ – e provocar-lhes as maiores invejas.
Passando pelas vitrines do shopping com seu cartão de crédito – do pai – numa mão, e algumas sacolas no outro braço, ela ouviu uma voz chamar por ela. Era Tavinho, o ex-namorado. Mauricinho que só ele, sabia que a encontraria perambulando pelo shopping favorito dela naquele horário. Péssima hora encontrá-lo! Bárbara virou para ele, torceu o nariz, e nem lhe deu maiores atenções, como se nem o conhecesse ou tivesse ouvido direito lhe chamarem. Continuou seu caminho jogando para trás os louros e belos cabelos lisos de chapinha. Era a cara da boneca Barbie.
- Quanta indiferença! – ele falou de bom humor. – Pisa mesmo naquilo que tu já quis!
- Para seu governo, meu bem, se te quis foi na falta de algo melhor. – ela retrucou.
Bárbara sabia espezinhar como ninguém com suas respostas ásperas quando não estava de bom humor. Tavinho se aproximou e conseguiu cochichar pertinho do ouvido dela.
- Ah é? Não era bem isso que você dizia. Você sempre pedia mais. Ou implorava é a palavra mais correta? – ele a provocou com um sorrisinho malicioso.
- Mais respeito comigo, seu grosso! Te odeio! Não fala mais comigo!
Tavinho riu. Já estava acostumado. Divertia-se cada vez que ela o repelia. Os dois tinham uma história juntos, já tinham namorado bastante tempo antes. Tá certo que quem reparasse superficialmente nos dois, via um casal de filhinhos de papai. Ele de topetinho e moletom jogado sobre os ombros. Assim como quem via em Bárbara a beleza e elegância de uma top model e só. Havia quem os julgava mal por terem dinheiro. Mas eles eram apenas vítima de uma sociedade de cultura atrasada que em prol do materialismo explorava a beleza e a alienação do consumo. E havia também quem via nos dois mais o que aparentavam ser. E de fato eram sim mais do que apenas viagens, roupas de grife e produtos importados. Mas isso lá no fundo, bem no fundo do fundo.
- Claro que você me odeia. Vamos sair esta noite? – Tavinho disse sarcasticamente.
- Vê se me esquece!
- Isso é um sim?
- Se enxerga, meu filho! Já te esqueci faz tempo!
- Eu duvido. Eu sei que te deixo louca!
- Não me provoca! – disse raivosa
- Senão o que?
- Eu chamo meu namorado!
Tavinho parou no meio do caminho, sem reação. Quem deu um sorrisinho malicioso agora foi ela. Gostou de ver que Tavinho não teve nenhuma piadinha, o tinha desarmado completamente. Uma bomba surpresa. Ele não imaginava que ela já pudesse estar namorando outro cara assim tão depressa. Afinal não fazia tanto tempo que estavam separados. Logo chegou o brutamontes. Bárbara apresentou-lhe seu novo namorado: Golias. Um armário! Um gigante! Três por quatro de altura! Tavinho ficou na dúvida se era Godzilla ou King Kong. Por uma fração de segundos, pôde imaginá-lo segurando Bárbara com apenas uma mão e gritando feito doido no topo de um edifício e as pessoas correndo apavoradas do monstro. Olhou-o para cima para encará-lo nos olhos, mas não conseguia enxergar acima das nuvens, embora tenha conseguido reparar bem no homenzarrão de qualquer modo.
- Quem é esse, benzinho? – disse Godzilla, oops... quer dizer, Golias.
- Benzinho? – pensou Tavinho durante alguns segundos para si. – Xii, acho que esse leão só tem cara de quem assusta!
- Ah, é só um colega, antigo. – ela fez pouco caso.
Golias estendeu a pata, oops... quer dizer, a mão para cumprimentar Tavinho, mas este, apenas acenou, de longe. Não queria facilitar ser estraçalhado logo de cara num aperto de mãos.
- Estou com fome, meu docinho, vamos comer algo?
- Meu docinho? – surtou Tavinho de novo. – Xii, vamos ver quantos outros apelidos de alto teor de sacarose o gorilão ainda tinha para proferir.
- Ai, tem aquele restaurante que você adora, meu pão! Vamos nele?
- Meu pão? Ah não!
Tavinho conteve-se ao máximo com seus pensamentos. Era como se contorcesse-se todo para evitar deixar sair algum comentário que lhe rendesse um passeio ao hospital. Não bastava toda aquela rasgação de seda barata, ainda por cima era com adjetivos obsoletos que doíam profundamente. Bárbara então se despediu de Tavinho sem a mínima vontade de olhar na cara dele. Tavinho assistindo a partida deles gritou:
- Ei grandão!
- Tu tá falando comigo, rapá? – Golias se virou com uma expressão de quem ia matar.
Tavinho não se deixou intimidar. Cara feia para ele era fome, mas muitas vezes caso de cirurgia plástica.
- Não pensa que me engana não. Eu sei qual é a tua.
- Sabe o que, rapá? – engrossou ainda mais a voz de trovão.
- Da verdade!
- A verdade? – Golias disse num tom mais manso tirando seu Raiban da cara.
Ser um bom observador teve lá suas vantagens. Tavinho sempre teve olho clínico para as coisas. Reparou nas mãos cuidadas, bem feitas e suaves do grandão quando este fora lhe cumprimentar. Tinha até base pois as unhas brilhavam. Não parecia ter aquela mão pesada de trabalhador. E realmente não podia ser trabalhador braçal daqueles que fazem esforço de baixo de sol, pois a pele do negrão era mais suave e polida do que bumbum de bebê. Nem um fio de barba também. Tavinho também não pôde deixar de reparar na calça jeans apertada curtíssima que o gigante usava. Sem aprofundar em detalhes da retaguarda onde o tecido, bem, entrava. O chinelinho de enfiar no dedo era cor salmão. O brinquinho na orelha direita então foi a gota d’água. Quem é que Golias queria enganar? Aliás, quem é que Bárbara queria enganar? Os três ficaram se encarando por muito tempo, como pistoleiros num duelo de faroeste para ver quem atiraria primeiro.
- Ai, Babi, eu falei pra você que o bofe ia descobrir! Eu não levo o maior jeito pra isso, amiga! Me perdoa! – disse Golias “toda” mole e “decepcionada" pela descoberta da farsa.
Bárbara estava perplexa, estática como um manequim de loja, e Tavinho com um ar triunfante. Até que ela disse:
- Me desculpa, amiga! Fui eu quem colocou você nessa roubada! Onde eu estava com a cabeça? Me perdoa, Mad?
- Mad? – perguntou Tavinho.
- Desculpa fofo, pode me chamar de Mad! Sabe, de Madalena! Prazer! – disse “a” brutamontes toda toda. Provavelmente aquele era seu nome de guerra, mas “ela” não entrou em detalhes, deixando-as para a imaginação.
Acabada toda aquela farsa absurda e completamente despropositada, Mad, oops... quer dizer, Madalena... hmm... bom, enfim... deixou Bárbara e Tavinho conversarem. Por fim Tavinho ouvira dela que apenas forjou um namoro para dar o troco nele. Estava com raiva, já que ouvira boatos que ele tinha saído com outra menina. O círculo – das fofocas – de Bárbara era poderoso, das melhores espiãs da vida alheia. Gente que não tinha mesmo o que fazer ou com que se preocupar de verdade. Tavinho fora visto com outra numa festa de gala semana passada, mas Tavinho disse que a morena alta e elegante com cara de “piranha” – assim como ela fora descrita por Bárbara – era na verdade a irmã dele que o acompanhava. Bárbara ficou com a cara no chão, e Tavinho claro que a perdoou. A vida era realmente ótima! Os dois fizeram as pazes na hora e foram viver felizes para sempre numa mansão no litoral, assim como sempre acontece, com todos nós.
por Felipe.Z

02 janeiro, 2006

- Eles -

Desceu a escada rolante de cabeça baixa. O olhar melancólico, sempre no chão. Dezenas de pessoas ao seu redor e era como se estivesse sozinho, distraído com seus pensamentos. De fato sentia-se só. Podia até ser roubado ligeiramente por qualquer um que nem perceberia. Todos os demais estavam em outro pique, em outro tempo, alienados, com a pressa urgente de estar em algum lugar. Típico de uma metrópole. Uma selva. As portas do vagão se abriram lateralmente e ele sentou-se num banco desocupado. Por pouco não fora pisoteado pela multidão logo atrás que surgira de muitos cantos.
Sentou-se lentamente e com um olhar vazio observou toda aquela gente. Tantos rostos que jamais vira e jamais voltaria a ver. Assim que o trem deixou o túnel, olhou para fora, para os prédios, para as casas e ruas que passavam rapidamente. Nas estações seguintes a multidão foi aos poucos dissipando. O ar encontrou mais espaço e ficou mais respirável. Lá de trás, do fundo do vagão, seus olhos apontaram para uma moça sentada muitos metros adiante. Ela tinha ao seu lado uma bolsa e segurava um livro que seguia lendo na viagem. Ele, estático, absolutamente encantado. Estranhamente seu coração pareceu acelerar.
Jamais vira tamanha beleza e doçura em uma mulher antes: os cabelos longos castanhos cacheados formavam nela a mais perfeita silhueta. A boca suavemente desenhada e avermelhada tinha um brilho e contorno delicioso. A pele branca e macia tinha a mais agradável fragrância. Atrás dos óculos de uma fina armação, os olhos esverdeados mais estonteantes percorriam atentamente as palavras do papel.
Ele não conseguia desviar sua atenção para qualquer outro lugar. Estava hipnotizado. Preso como um ímã. Não queria deixar de admirá-la e admitiu para si a loucura que era pensar todas aquelas coisas a respeito de uma estranha que até alguns segundos atrás não fazia idéia que estava no mundo. Mas ao mesmo tempo agradeceu a deus por saber que ela estava ali no mundo também. Não era uma miragem. Era bem real. E quem ela era, não parecia ter a menor importância para ele. O que importava é que estava ali, diante dele. Pensou em levantar e ir até a garota. Mas não saberia o que fazer, como agir. Nem poderia imaginar o que ela ia pensar. Um estranho puxando papo assim do nada, ela com certeza estranharia. Tinha que pensar em algo e depressa. A qualquer momento ela poderia ir embora e jamais a veria novamente em toda sua vida. Uma estranha sensação o tomou. Estava interiormente inquieto. Estava surpreso consigo mesmo, e não entendia nada do que estava acontecendo naquele momento. Muitas indagações, e aparentemente não havia por que. Se fosse contar a alguém mais tarde sobre isso, provavelmente não entenderiam também e tomariam a história por piada.
Anunciada a próxima estação, ela guardou o livro na bolsa e levantou-se em direção a porta mais próxima. Ele não queria que ela partisse, não agora. Gostaria ao menos de saber seu nome. Então as portas se abriram e ele pôde vê-la por inteira. Sua figura o fascinara intensamente e ele suspirou. Ele não sabia o que era tudo aquilo que sentia e assim que ela pisou fora do vagão, uma força desconhecida deu-lhe coragem para erguer-se em direção a porta mais próxima, acompanhando os movimentos dela. Dezenas de pessoas entrando e saindo do trem e ele fixado naquela bela jovem. Ela topou com um apressado qualquer que derrubou seu livro e sua bolsa e o indivíduo nem virou para trás. Vendo aquilo, ele, foi correndo ajudá-la. Abaixara-se para apanhar suas coisas. Ficara impressionado como era ainda mais linda de perto. Se ele imaginara o perfume dela ser o mais inebriante, pôde então naquele momento comprovar indescritível fragrância. A boca teve o contorno mais delicado quando para ele sorriu agradecendo a gentileza. Ele, intimidado por ela, retribuiu com um sorriso acanhado. Ela ficara olhando para ele também. Sem saber o que falar para ela, sentiu seu rosto enrubescer. As únicas palavras que ele conseguira dizer foram as que ele mais temia em um primeiro contato.
Surpreendentemente quem ruborizou desta vez fora ela ao ouvir o mais lindo elogio a sua beleza, o que a tornou ainda mais encantadora. Os dois então sem que percebessem foram caminhando, juntos, para longe do metrô que partia. Ele, sentira-se no céu. A ela, agradava a companhia de rapaz tão gentil, tão educado. Logo a ansiedade dele passara e a conversa fora fluindo de tal maneira que passados apenas alguns minutos, conversavam como se há tempos se conheciam. Foram parar numa lanchonete ali mesmo dentro do terminal para tomar um cafezinho. Por conta dele é claro, ele faria questão. Na mesinha foram se conhecendo. O sorriso dele era infinito enquanto a tinha diante de si contando sobre ela mesma, dona de uma voz delicada, suave e ponderada. Ela também se interessara por ele enquanto ele contava sua história. Ele tinha uma ótima conversa. Passaram várias horas e eles ali estavam, no auge de um papo animado que pelos dois podia continuar para sempre. Mas nem tudo era perfeito, ela tinha que partir. Ele não gostara da idéia mas compreendera. Era realmente uma pena. Ela não morava longe dali e ele fizera questão de acompanhá-la. Claro, pois queria ter a companhia da moça o máximo que pudesse, e a ela também muito agradou a idéia de tê-lo junto. A noite começava a cair e podia ser perigoso ir sozinha. Foram caminhando e conversando sem pressa.
Diante da casa dela eles pararam, e ele ficara sem jeito de pedir-lhe o telefone. Sim, porque não queria perder o contato com ela bem ali, depois de uma tarde inteira juntos. Ele se divertira muito. Era um bom rapaz, mas a vida não estava sendo tão gentil com ele e aquela tarde fora a melhor coisa que havia acontecido nos últimos tempos. Ela também gostara imensamente de tê-lo conhecido e entregou-lhe um cartão. Ela percebera a timidez do rapaz e resolvera poupá-lo de qualquer embaraço. Ele sorriu alegre e guardou o cartão agradecido. Então parecia que aquele conto de fadas terminava ali. Ou pelo menos, naquele dia. A história poderia estar apenas começando. Os dois ficaram se olhando nos olhos, sem saber como se despedir um do outro. Até que ele estendeu-lhe a mão. Achou que um beijo, mesmo que no rosto, ainda era inapropriado. Teve a mão dela entre as dele por muito tempo e internamente não queria soltá-la. Era leve e macia. Mas ele prometera ligar. Com toda certeza ligaria. Queria tantas outras oportunidades em estar ao lado dela quanto pudesse. Ela lhe fazia sentir muito bem, feliz. Então cada um virou-se. Ela seguira até a casa e ele voltava pela rua, com as mãos no bolso da jaqueta. Já alguns passos dados e ele virou para olhá-la. Ela gritara para ele e vira correndo, parando diante dele, ofegante, parecia querer dizer-lhe alguma coisa. Talvez seu nome. Ele acabara de perceber que apesar de todo o tempo que passaram juntos, tantas histórias e risos, esqueceram de apresentar-se formalmente. Então ela aproximou-se de seu rosto lentamente e encostou de leve seus lábios no dele, agradecendo baixinho pela tarde em seu ouvido. Sem esperar uma resposta ela voltou-se e seguiu seu destino. Ele, estático, levou os dedos aos lábios, incrédulo, e convencidamente apaixonado, esboçando o sorriso mais feliz do mundo...
Anunciada a próxima estação, ela guardou o livro na bolsa e levantou-se em direção a porta mais próxima. Ele, com os dedos nos lábios, pôde vê-la por inteira. Não se levantou do banco que estava sentado, lá no fundo do vagão, mas não pôde deixar de acompanhar-lhe os movimentos apenas pelo olhar. As portas se fecharam lateralmente. Pela janela, ele ainda pôde vê-la topar com um apressado qualquer e derrubar-lhe os pertences no chão. O trem andou. Ela, lá fora, recompôs-se. Ele, lá dentro, apenas assistindo, melancólico. Ela então seguiu seu caminho pela estação de metrô, e ele jamais a veria novamente em toda sua vida.
por Felipe.Z