25 novembro, 2009

- Lua Cheia -

Era noite. Não agüentou e saiu. Deixou tudo. Saiu como um raio sem dizer a ninguém aonde ia. Foi andar pelas ruas sem rumo. Em sua mente e seu coração uma dor infinita. Estava tão perturbado que não deixou que seus sentidos lhe avisassem do perigo no instante em que atravessava a rua.
Algum tempo depois acordou numa cama de hospital. Sentia agora outras dores. No corpo, um braço e perna quebradas, e arranhões que o tempo cicatrizariam. Na memória, um vazio. A batida com a cabeça fora tão forte que ainda sentia os efeitos da concussão. Todos os dias havia sempre uma porção de gente a sua volta que ele agora não reconhecia. Diziam ser seus pais, seus amigos, mas não se lembrava, menos ainda de como havia parado ali. Na noite do acidente ele havia chegado ao hospital em coma, mas por algum milagre, saiu dele após dois dias. Foram quarenta e oito horas de terror e angústia para a família. O rapaz ficara no hospital em observação por pouco mais de um mês, e depois de uma série de exames que não constatou mais nada, foi liberado para voltar para casa.
Embora as fotografias de família estivessem sempre por toda a casa, ele não conseguia ter lembranças nem mesmo de seus pais. Amigos vinham lhe visitar e ele sempre gostava, mesmo não lembrando de todas as histórias que lhe contavam com alegria e risos. Sua mãe sugeriu que fossem para a casa de campo no interior para uma mais rápida e melhor recuperação. Apesar do diagnóstico médico, o coração de mãe era sempre mais esperançoso e cheio de fé, e afinal, a tranqüilidade e o ar puro do interior só lhe fariam bem. Viajou com os pais e no sítio ficaram várias semanas. Quando regressaram, o rapaz foi levado mais uma vez ao hospital para a remoção do gesso do braço e da perna. As cicatrizes pelo rosto e corpo iam sumindo rapidamente. Ainda que tudo parecesse estar voltando ao normal, a maior frustração era ele não conseguir lembrar. Todas as noites sua mãe orava para que alguma luz baixasse e a memória do único filho se acendesse novamente. E foi numa noite, então, que essa luz veio. Ele lembrara de um fato que ninguém havia mencionado até então. Algo peculiar de sua infância. Foi correndo contar aos pais e sua mãe chorou tamanha era a alegria. Era grata aos céus por terem atendido suas preces.
Os dias foram passando e cada vez mais lembranças distantes lhe tomavam. Das aventuras com os amigos e as muitas histórias também. Os médicos que, tão mais surpresos, não souberam o que dizer a respeito do fenômeno, afinal, tinham diagnosticado uma porcentagem baixa de o rapaz recuperar a memória. E era mesmo curioso o fato de apenas sua memória ter sofrido perdas e não as capacidades motoras como acontece na maioria dos casos. Uns diziam ser milagre. Já outros que era o destino. E outros ainda que algum motivo ainda maior havia de ser. Mas era ainda mais curioso o fato de apenas as lembranças mais distantes estarem voltando. Ele sentava-se ao computador, relia os textos que havia escrito e adorava olhar as fotos que lá estavam. Passaram-se seis meses desde o incidente e sua vida já havia voltado ao normal, embora, o passado recente continuasse um mistério. Suas lembranças mais recentes remontavam um pouco além de depois ter se formado na faculdade, como se cerca de pouco mais de dois anos de sua vida estivessem faltando.
Numa tarde comum, então, o rapaz decidiu ir a uma livraria que adorava onde sempre encontrava muitas coisas que lhe interessavam. Passava horas lá. Sentou-se à uma mesa, pediu um café, e abriu um dos livros que tinha acabado de comprar. Numa pausa, percorreu os olhos ao fundo da loja, perto de uma das várias estantes e notou os olhares de uma moça em sua direção. Mas apenas isso. Seus olhos logo voltaram para as páginas à sua frente. Passado alguns minutos mais, fizera novamente a mesma coisa e a moça que o encarava estava mais próxima, agora, atenta à uma revista. O rapaz então terminou o segundo café, fechou o livro, e foi se levantando quando reparou que ela vinha até ele.
- Oi? – disse ela.
- Oi. – ele respondeu depois de alguns segundos. Percebeu que ela o admirava bem enquanto um silêncio incômodo tomava conta. – Ah, perdão! Você quer usar a mesa? Pode ficar, eu já estava de saída mesmo.
Por alguma razão a garota pareceu ofendida, mas ao mesmo tempo, ela não deixou de ficar admirada com ele e só o que fez foi continuar encarando-o nos olhos.
- Desculpe, mas você está bem? – ele perguntou.
- Sim. E... e você?
O rapaz olhou ao redor achando engraçada a situação.
- Eu estou ótimo! Posso ajudar em alguma coisa?
A garota engoliu fundo e com ares de indignação deu meia volta e saiu andando. O rapaz nada entendeu. Situação mais maluca, pensou. Foi pagar a conta e com sua sacola de livros deixou a loja. Mais à noite, em casa com os pais, ele contou o que se passara na livraria. Marido e esposa se entreolharam em silêncio, apenas deixaram o filho terminar de contar a história. De fato, era apenas uma situação estranha. Pai e mãe viam seu filho cada vez mais feliz recuperando sua vida novamente. Aos poucos ele voltou a sair à noite com os amigos, e sua mãe, sempre com o coração apertado de que algo ruim pudesse acontecer de novo. O pai era mais tranqüilo. O susto que todos viveram foi um só para nunca mais, dizia. Rapaz ainda jovem, de boa índole, tinha mais é que curtir a vida que passa rápido, e ele estaria sempre protegido por alguém lá de cima.
Fora justamente numa das noites de sábado que ele trocara olhares com uma garota numa festa. Ela tinha olhos azuis cativantes, cabelos compridos claros e um sorriso bem charmoso. Não foi daqueles encontros cinematográficos clichês que rapaz olha para garota e garota olha para rapaz e já sabemos que foi obra do destino e eles viveriam felizes para sempre. Não. Embora seria, do mesmo modo, um equívoco pensar que talvez o fato de ter perdido toda sua memória recente fosse mera obra do acaso. Mas naquela noite nada de mais aconteceu. Os dois apenas chegaram a bater um papo animado e ficaram por perto juntos à outros amigos em comum. Não trocaram telefones nem qualquer outra espécie de contato. Foi uma divertida noite de música e altas risadas.
Paralelamente, alheia à tudo isso, havia um alguém que havia continuado normalmente sua vida, embora, não tão estável quando gostaria. Suas noites não eram tão bem dormidas, e havia as pressões do trabalho e dos estudos que faziam-na em alguns momentos querer chutar tudo para o alto. Bastava um momento de sossego para que velhas e boas lembranças lhe surgissem e não sem um pouco de remorso. Já fazia tempo que ela não sonhava mais com ele. Contudo, uma parte dela desejava por voltar a sonhar. Ao menos assim, ela poderia vê-lo mais uma vez e isso poderia fazê-la reviver os mais felizes momentos que viveram juntos. Mas, porque isso agora?, ela pensava. Seria saudade? Ela não sabia dizer. Quando ela decidiu deixá-lo, era como se tivesse se transformado numa pessoa que nem ela mesma sabia que existia, então, o amor e a doçura que possuía se tornaram indiferença e orgulho da noite para o dia. A verdade é que se antes ela julgava ser a garota mais feliz e completa do mundo, agora ela não era mais. Ela não gostava nem de cogitar em admitir, mas no fundo, ainda havia alguma coisa em seu coração. Escondido, mas havia.
Ela não esperava encontrá-lo tão cedo e assim por acaso – se é que o acaso existe. Mas quando ela o viu na livraria no centro da cidade uma certa tarde, seu coração pulou pela boca. Conteve-se. Pelo canto do olho procurava mirá-lo enquanto fingia estar mais interessada nas revistas das prateleiras. E quando percebeu que ele a vira também, foi como se uma descarga elétrica lhe tivesse passado pelo corpo. Mas, outra vez conteve-se. Ela tinha certeza que ele também a vira, mas ele simplesmente não dera atenção. Ou fingiu que não viu?, pensara. E quem poderia culpá-lo? Enfim, já se passara tanto tempo que talvez agora, depois de tanta distância, silêncio, e falta de notícias, ela acreditava que pudessem no mínimo se falar novamente. Mas, seria só isso que ela queria? Afinal, o que de fato ela queria? Nunca mais o procurou desde que decidiu acabar com tudo. Se talvez ela pudesse ser considerada uma pessoa confusa, naquele momento tinha certeza de uma coisa, que deveria falar com ele.
Ainda antes de ela chegar em casa, veio todo o caminho do centro com um grande sentimento de indignação. Ele a tratara como se nem a reconhecesse. Mas, quem poderia culpá-lo? Ela esperava um mínimo de educação. E se ele estivesse fazendo graça como ele costumava fazer antes? Ela não soube o que pensar daqueles breves minutos que a marcaram. Curioso, que ela não planejava ir à livraria aquele dia. Simplesmente deu vontade e acabou indo. Nem era caminho ou perto do bairro em que morava. Passado isso, ela logo se voltou para suas obrigações e quando sua mente já estava mais do que ocupada, de algum modo, a imagem dele surgia em sua cabeça. “Mas porque isso agora?”. Ela não admitia que sentia falta, aliás, quanto a ele, a expressão ‘sentir falta’ parecia não constar em seu vocabulário, ou assim ela acreditava. Mesmo quando sinais evidentes de lembranças de momentos inesquecíveis que ele proporcionara lhe tomavam. Ela se sentia angustiada e não se dava conta do porque. Havia feito uma má escolha e na época não enxergara isso. Foi quando uma noite, se pôs a refletir e a lembrar de tudo desde o começo.
Haviam se conhecido pela Internet. Não numa sala de bate-papo qualquer, mas por intermédio de uma conhecida virtual que tinham em comum. Ele, quase finalmente recuperado do namoro anterior, e ela, só de boa. No começo era um “oi” aqui e outro ali. Ele, formado em letras, era escritor. Algumas de suas histórias curtas costumavam ser frutos de sua criatividade misturados com partes de suas experiências pessoais. No geral, seus textos evocavam romance, e deve ter sido justo aí – talvez – que a atenção dela fora ganha, pois era fascinada por leitura. Passaram a conversar cada vez mais, porém, tudo online como quase tudo é hoje em dia. Conhece-se muito de alguém através de estações virtuais, e foi bisbilhotando as páginas um do outro que o interesse foi aumentando. Havia uma foto em que ela sorria que o encantara muito, e ele logo pensara: “Hmm, porque não?”.
Ele era engraçado, e ela adorava. Mas o interessante é que partiu dela a idéia de se conhecerem pessoalmente. Ele não estava acostumado com isso, mas achou bacana, gostava de garotas com atitude. Telefones foram trocados e ele descobriu uma voz meiga e suave do outro lado da linha quando um dia fez uma ligação surpresa já que o papo na rede estava um tanto monótono. Tudo ia ficando mais atraente. Ele conseguia fazê-la rir com facilidade, e deve ter sido aí, – talvez – que a idéia do encontro se solidificou. Logo o encontro foi marcado e claro que um cinema é sempre a melhor idéia para um primeiro encontro. Ele chegou primeiro. Ela, demorou mil anos! Um exagero, óbvio, mas é claro que ele sabia que as mulheres eram assim. Talvez um atraso ou talvez ela estivesse em dúvidas do que vestir. Ele era um pouco mais velho do que ela, e estranhamente, estava um pouco inseguro. Na hora, receou não lembrar das fotos que vira dela pois essa era a única maneira de identificá-la quando chegasse. Mas logo ficou tudo bem. Embora se conheciam já havia algumas semanas, a tensão imperava um pouco dos dois lados. Notou que ela parecia ser uma pessoa bem segura de si, e isso o agradara. Ver aqueles olhos castanhos, e aquele sorriso dela pessoalmente, era ainda mais fascinante. Filme escolhido e o nervosinho da sala escura. Divertiram-se, e claro, teve o beijo. Tudo muito tranqüilo e gostoso. Sentiram como se já viessem fazendo aquilo. Ela era um doce de menina, assim ele constatou. A tarde foi ótima e ao término do encontro, mais uma surpresa que ele não estava acostumado. Ela perguntou se ele queria vê-la novamente. Claro que lhe agradara a idéia: “Hmm, porque não?”.
Então continuaram a se falar através do computador e telefone. Fora visitá-la onde ela estudava, passearam, se conheceram mais, estavam curtindo muito. Curioso ressaltar o quanto ele foi tranqüilo ao convite dela de conhecer onde morava. Talvez antes ele já temesse estar indo rápido demais ao entrar na vida da outra pessoa daquele jeito, mas ele foi sem crise e conheceu a família dela, gente muito boa que o recebera bem. Já estavam juntos há um mês quando a pediu em namoro. Ele sabia que ela era do tipo romântica então quis proporcionar algo que ela jamais pudesse esquecer, e era fato que não ia mesmo. Foram à um parque numa linda manhã de sol e ficaram por lá até o anoitecer. Um dia muito feliz e perfeito. Os meses foram passando e seu amor foi crescendo. O coração dele já havia se recuperado da antiga ferida. O dela não poderia estar mais completo, pois agora tinha o que sempre desejara de um homem. Entre os dois havia respeito, carinho, cumplicidade e muita paixão. Nunca brigavam, se entendiam na base do diálogo, coisa bastante difícil de se ver hoje em dia. Completavam-se incrivelmente bem. Não havia nada que não pudessem ter um do outro, e era isso que tornava tudo perfeito demais para ser verdade. Ele acreditava que finalmente tivesse descoberto o que ser para uma mulher, pois ela dizia com toda convicção, que ele era de fato tudo o que ela sempre quis.
Já havia algum tempo que ela ansiava por encontrar um emprego. Depender dos pais, para ela, já se tornava um fardo. Ele a apoiava totalmente. Estava ao lado dela simplesmente para tudo. Por fim, o desejo do emprego se tornou realidade. A felicidade foi muita. Agora ela teria o próprio dinheiro e dava seus primeiros passos a uma certa independência. É verdade dizer, que em seu íntimo, ele ficara um pouco enciumado. Ela teria a atenção voltada para o novo emprego agora. Mas ela nunca que colocaria qualquer outra coisa acima do que sentia por ele, e ela fazia questão de ressaltar isso. Amavam-se intensamente e isso bastava. Ele não demorou nada para perceber a bobagem que era ficar enciumado. Passaram a se falar à noite. Ela agora, cansada do dia. Falavam-se rápido, e algo outra vez começou a cutucá-lo. Suas intuições lhe diziam que as coisas não estavam indo tão bem quanto antes. Seria coisa de sua cabeça?
Ele não gostava da sensação de que as coisas esfriavam lentamente. Sentia-a longe. Era muito ruim. Mas ela dizia que era só o cansaço. Era um momento novo da vida dela e logo o novo ritmo se estabeleceria. Ele acreditava nas palavras dela porque havia um amor insuperável entre os dois, e assim todos os fantasmas da dúvida desapareciam. Estavam juntos há seis meses e ele continuamente pensava quem embora não fosse muito tempo, sentia como se fosse uma eternidade. Tudo era tão bom. E agradecia aos céus pelo que estava vivendo, pelas velhas feridas já curadas, e pelo desejo de prosperar ainda mais com um amor no coração. Mas, é verdade o que dizem sobre o verão atingir seu ápice antes do vento frio do outono e inverno chegar, e foi através do mesmo computador em que se conheceram, que ela lhe contou que precisavam dar um tempo no relacionamento. Ao ler as palavras dela na tela branca foi como um golpe que o deixara sem ar. Pegou o telefone como um raio e por ali conversaram. Ela em choro e conflito não sabia mais o que queria. Apenas repetia que estava confusa e que precisavam ficar um tempo afastados, ainda que o amasse. A vida já de antes havia lhes ensinado que dar um tempo não existia. Ou se está com a pessoa, ou não se está, mas era algo que ela alegava ser necessário. A conversa por telefone acabou sem um desfecho. Ele completamente sem entender o que estava acontecendo julgava ser a pressão que ela vinha sofrendo. Estudos, emprego novo, cobranças da família. Mas, não era melhor passar por todas as dificuldades juntos, com a força que um daria para o outro, do que afastados?, ele pensava. Era justamente o que ele não compreendia e havia deixado claro. O telefone voltara a tocar. Ela em pranto. No fundo ela não queria magoá-lo. E como poderia? Era o homem da vida dela. Estava com ela para tudo o que precisasse. Quantas mulheres não dariam tudo para ter um alguém assim? Mas ela mesma não sabia direito o que estava fazendo. Ele respirava fundo para não terminar de demolir o que começava a desmoronar, ao mesmo tempo que sua experiência lhe dizia que este não era o caminho. Ele sabia que o caminho era a compreensão e o amor que sentia por ela. Então, resolveu acatar o pedido. Por ela, e apenas por ela, ele concederia. Ela precisava colocar as coisas no lugar. E se tempo era necessário, então tempo era o que ela teria. Se essa atitude dele não fosse amor de verdade, concluiu, então, que nada mais seria. Triste foi a noite que se seguiu tanto para ele quanto para ela. Ela agarrada a seu travesseiro que absorvia sua dor, orava para que as dúvidas que estava tendo desaparecessem.
A manhã seguinte despertou para ele com uma nova esperança. Havia recebido um e-mail dela. Dizia que apesar de tudo, o amava, e que ele ainda era o homem da vida dela pois não encontraria em mais ninguém tudo o que encontrara nele. E que estando do lado um do outro eles superariam toda e qualquer crise. O coração dele se enchera de luz ao ler aquelas palavras e pelos próximos dias tudo correu normalmente. Ligaram-se, trocaram mensagens de carinho, parecia tudo estar voltando ao normal, e aos poucos. Mas a vida tem maneiras estranhas de surpreender as pessoas. Ou será que são as pessoas que tem maneiras estranhas de surpreender a vida? Passada uma semana, lá estava ele novamente estarrecido diante da tela do computador. As palavras dela, frias. O impacto nele, como o de um disparo. Ele não entendia. “De novo isso? Por quê? O que houve com você?”. Mas ela, completamente diferente da doce menina que ele amava, simplesmente não sentia mais nada. Fora esse o argumento cruel que ela usara. Ele parou tudo e teve certeza que alguma coisa aí não estava certa. Indagou se havia outro em sua vida, mas não era esse o caso, assim ela dissera. Apenas não pensava mais nele com aquela mesma paixão de antes. Isso o martirizou muito. Não podia acreditar, de fato, que fosse possível. Como um relâmpago ligou para ela. Do outro lado a voz meiga e suave de fada não existia mais. Sentiu como se fosse outra pessoa. “E todas aqueles sonhos, juras e promessas?”. Do outro lado, só o silêncio. Ela o estava ferindo profundamente, e ele, perdido na calada da noite pedindo por socorro sem a luz do luar para lhe abrir um caminho. Estava tudo se repetindo de novo?, ele pensava. Custava-lhe acreditar, mas estava. Exatamente como da última vez, agora esta, a mesma pessoa que jurou que não deixaria nada do tipo lhe acontecer, fazia o mesmo.
Não agüentou e saiu. Deixou tudo. Saiu como um raio sem dizer a ninguém aonde ia. Foi andar pelas ruas, sem rumo. Em sua mente e seu coração, uma dor infinita.
Ao rever toda a história diante de seus olhos, ela se emocionou e chorou. “Mas o que foi que eu fiz”? Sim, por fim admitiu para si, como se tivesse se redescoberto, que o arrependimento estava batendo em sua porta e não era de hoje. Mas o estrago já estava feito. Sentia-se estranha, enojada de si mesma quando pensava o quanto fora ingrata com quem só lhe deu amor. Por muitas outras noites ela demoraria a pegar no sono pensando em tudo aquilo. A lua cheia que a fazia sentir-se amada e protegida, não brilhava mais. Tentava não deixar tudo isso interferir no trabalho, nos estudos, e no relacionamento instável que vinha tendo. Mas ela precisava se resolver, não podia continuar assim. Quando não conseguia dormir, ia para o computador ler novamente os antigos textos que ele havia escrito para ela, e muitas vezes, ela se emocionava como se fosse a primeira vez. Não restava dúvidas. Ela tinha que vê-lo de novo, e mesmo depois de tanto tempo, conversar sobre tudo o que aconteceu. Assim ela esperava.
Naquela mesma noite, os pais dele conversavam baixo já deitados para dormir.
- O que te aflige? – perguntou o marido.
- Não sei. Coisa de mãe. Um medo de que ele saia do caminho em que está agora.
- O que quer dizer?
- Que de uma hora para outra ele redescubra o que não deve.
- Meu bem, o que fizemos está feito. Por muito tempo nós conversamos se deveríamos, não foi? E não tenha dúvidas de que eu faria de novo para protegê-lo. E você não se culpe por isso. Afinal, você mesma leu com seus próprios olhos toda a conversa que eles tiveram.
- Sim, eu sei que em parte ela teve a ver com isso. Não estivesse ele transtornado...
- Fique tranqüila. Cuidei para que no computador dele não sobrasse vestígio qualquer dela, assim concordamos. Fotos, objetos e até mesmo o celular. É como se ela não tivesse existido. E veja só como a vida é.
- Mesmo assim, não consigo deixar de pensar se o que aconteceu com ele é uma benção ou uma tragédia.
- Se alguém destruísse seu coração como ela destruiu o do nosso filho, você ia querer levar contigo essas dores? Eu gostaria de poder esquecer tudo. Portanto, é uma benção.
- Mas, por outro lado não consigo deixar de pensar que ela não tenha tido a intenção. Como todos nós, como ela saberia o que ia acontecer? E do pouco que pudemos conhecer dela...
- Meu bem, entenda uma coisa, todo o mal que é feito, é sempre mal, com ou sem intenção. Assim como todo e qualquer bem que é feito é sempre bem.
- E se ela voltar a procurá-lo? E se ela disser que se arrependeu e lhe contar quem ela é? Ela ainda não deve saber de nada do que aconteceu.
- Temos que confiar na vida. Tudo o que é agora, é porque não podia ser de outro modo. Não existe o acaso, e tudo o que passamos e nosso filho também, é a maior prova disso.
- Com essa decisão, espero não estarmos sendo injustos.
- Tudo vai ficar bem. Não se preocupe. Tenha fé.
Algumas semanas se passaram. O rapaz estava na livraria olhando livros numa prateleira cheia. Puxou um em particular e o abriu. Sempre se interessou em assuntos de cunho espiritual e filosófico. Com os olhos nas páginas foi caminhando até uma das mesas vagas e antes que pudesse se sentar ouviu atrás dele:
- Tem muito bom gosto para leitura. Você sempre foi nerd assim?
Surpreso se virou, e ficou mais surpreso ainda com aqueles olhos azuis que tão logo reconheceu, não demorando em responder:
- Se funciona em impressionar garotas bonitas como você, então a resposta é sim, sempre!
Os dois riram. Cumprimentaram-se e sentaram-se à mesa. Conversaram empolgados sobre um monte de coisa. Ela adorava um papo cabeça, e também, as graças que ele fazia como ninguém. Desta vez pediu o telefone dela. Ela em troca quis o dele e ficaram de se ligar para marcar alguma coisa no fim de semana. Saíram, se conheceram mais, e se gostaram mais. Passaram a ver-se com freqüência e batia aquele friozinho na barriga toda vez. Estavam felizes por terem se achado. No céu, a lua sorria em seu brilho mais intenso em companhia de mil estrelas que dançavam no cosmos. Era lindo olhar para o luar nas noites de verão. Seu fulgor trazia paz ao coração e, por um instante, era como se o mundo se tornasse um lugar melhor.
Paralelamente a isso, para outra pessoa, era como se de repente o mundo desmoronasse. Exigida ao extremo no trabalho, não agüentava mais um dia. Nos estudos, as provas da faculdade se tornavam um pesadelo interminável, e também, para acarretar as frustrações, sem mais nem menos, o rapaz com quem estava saindo findara de vez o que vinham mantendo. Tudo a sufocava ao mesmo tempo em que uma sensação de vazio lhe tomava. Sentia-se desprotegida e sozinha. Como nunca antes, sentia uma gigantesca necessidade de desabafar e gritar, mas não o fazia. Engolia tudo com uma força que não tinha, embora, muitas vezes não agüentasse, e era o travesseiro quem lhe enxugava as lágrimas durante a noite. Mas só essa força não lhe bastava. Lembrou que uma vez, há muito tempo, alguém lhe dava essa força, e era justo este pensamento que mais a feria. O fato, era que agora ela precisava disso mais do que jamais precisou. Sabia que ninguém mais abrandaria suas angústias como só ele fazia. Deitada, ela abraçava os joelhos para tentar tapar o grande buraco que sentia no estômago. Mesmo assim, ela sabia que não podia mais tê-lo de volta, e, ironicamente, ou por obra do acaso, ou por obra do destino, ela jamais soube que para seu antigo amor, seu grande amor, ela não existia mais. Aquela paixão e amor sublime que uma vez sentiu intensamente ficaram marcados no tempo, e apenas em sua memória. Ela seria a única a levar consigo os momentos fabulosos de alegrias, carinho, compreensão e muito amor que vivera em sua mais pura forma e que preferiu abandonar.
Eles se reencontrariam novamente algum dia? Talvez. Em sonhos, quem pode saber? É uma pergunta sem resposta. Afinal, quem sabe dos caminhos misteriosos que a vida nos guia? O que se deve esperar das pessoas é sempre o bem. Que elas realmente saibam qual percurso seguir frente aos desafios mais difíceis. Que dêem o melhor de si em face às grandes adversidades. Que vejam o quão preciosas são as pessoas à nossa volta enquanto ainda há tempo. E que, acima de tudo, elas estejam dispostas a se libertarem dos laços e véus que as cegam e as induzem fatalmente aos erros, através do único sentimento capaz de construir e preservar a tão desejada paz e a felicidade.
por Felipe.Z